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Passo por irreverente e pode ser que não seja calúnia
Leal da Câmara (em carta a Aquilino)
Ainda que este seja um blogue de desenhos e eu me interesse muito naturalmente por tudo o que diga respeito à expressão gráfica e à arte da caricatura, a verdade é que também aprecio uma boa prosa. Por isso quando, num alfarrabista em Aveiro, me caiu nas mãos uma bela edição, encadernada, do Leal da Câmara, de Aquilino Ribeiro, não resisti.
Comprei-o, pois está claro.
Embora o meu exemplar seja de uma edição de1975, a obra data de 1951, três anos após o falecimento do artista. São duzentas páginas da mais saborosa e torrencial prosa sobre a vida e obra do melhor, mais consequente e influente caricaturista português da primeira parte do século vinte e, talvez também, o de mais sucesso (e proveito) internacional.
Aquilino não se poupa de pormenores deliciosos em episódios da vida atribulada de um personagem invulgar que esteve exilado no estrangeiro para não ir dentro e ser deportado para as colónias, um caricaturista especialista no “apupo homérico”, naquilo que “Colette chamava les dessins barbares de Camara”; que ilustrou Ana de Castro Osório e Junqueiro, conviveu com gente como Trotsky, que foi amigo de Valle Inclán - “foi na sarrafusca duma tertúlia de arte e literatura que, por causa de Leal da Câmara, Valle Inclán, catedrático de estética, como se intitulava nos bilhetes de visita, perdeu um braço”- de Ruben Dario e de Perez Galdós e, “com o seu lápis vermelho”, flagelou as “taras físicas e morais de reis e magnates” do seu tempo, primeiro em A Corja e na Marselhesa e depois no Assiette au beurre, ombro-a-ombro com Caran d'Ache, Forain, Grandjouan, Steinlen, Juan Gris, Willette ou Jean Veber, os mais célebres caricaturistas da Belle-Époque. Tudo isto antes de se retirar para a Rinchoa, em Sintra, onde finalmente se casou e se dedicou à melancolia e à vida simples (o ensino, o estudo do saloio, a pintura, a ilustração de livros infantis, a decoração, o desenho de móveis) e depois morreu.
Este livro está repleto de pérolas preciosas. A propósito do riso e da caricatura Aquilino permite-se discorrer tão livremente sobre Leal da Câmara como se falasse de si mesmo. Eis algumas que não me importo de partilhar. Ora tomem lá:
“Em obediência ao princípio de Spielmann: Nenhum desenho é uma verdadeira caricatura se não obriga a pensar, as suas legendas políticas ou sociais constituem verdadeiras epigrafes de capítulos da história contemporânea”.
“À parte a casuística, a caricatura é acima de tudo a arte do riso no seu significado próximo de vaia”.
De ordinário o riso implica reacção, no vero sentido do termo, de Cristo contra Caifás, do murganho contra o sapo. Quando o riso é revolta, a favor do pobre contra o rico, do oprimido contra o tirano, do governado despoticamente contra o governante cheio de prepotência, esse riso é salutar e generoso. Tal o riso de Daumier e de Leal da Câmara.”
“Não sei quem foi que classificou Leal da Câmara de artista diferente. Diferente sem determinativos. E, reflectindo bem, tal simplificação convém-lhe. Não se pode ser totalmente à parte do mundo em que nos movemos ou na arte a que nos consagramos de todas as veras. Mas podemos sê-lo tanto que não haja outro próximo de nós a projectar-nos a sua sombra. Tal sucede com Leal da Câmara.”
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A casa que Tomás Júlio Leal da Câmara adquiriu em 1930 e habitou durante os seus derradeiros anos foi doada ao Município de Sintra em 1965, por morte da sua viúva. É hoje a Casa-Museu Leal da Câmara e acolhe um valioso espólio.
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3 comentários:
Obrigado!
«Leal da Câmara era um intelectual no rigoroso sentido da palavra. Ao mesmo tempo que desenhava com a viveza própria de grande caricaturista, escrevia de inconfundível maneira. A sua escrita era fácil, correntia, sem deixar de ter a sua elegância. Fazia jornalismo como um profissional que encanecesse a ouvir as Marinoni sobre as madrugadas a engolir e revessar o papel que breve iria correr Portugal de ponta a ponta. As cartas que publicou no 'Mundo', as crónicas que escreveu para a 'Noite', do Rio de Janeiro, reunidas no 'Miren Ustedes', as conferências efectuadas em Portugal, França e Brasil, um estudo acerca de Manuel Gustavo abonam esta faceta do seu talento. Até nas legendas das caricaturas, mordazes, mas justiceiras, ele se mostrava literato e moralista como Gavarni.
Este desdobramento, desenhador e homem de letras, vinha na sua cartilha de ideias sobre arte. Foi na velada em honra do pintor Gustavo de Maeztu que ele definiu, se não as bases duma teoria estética, ao menos os rudimentos duma teoria que, somados ao que muitas vezes lhe ouvimos, serem porventura para explicar a sua feição vária e singular. Seria pela sensibilidade que os artistas exercem a função privilegiada. Por isso, tudo quanto realizam não passa da resultante reflexa da impressão que receberam do mundo que os rodeia. Desse mundo, a forma, para eles, sobreleva ao resto. Comunicar com essa espécie de soberania, cuja alçada se estende à cor, volume, meio local, relação, não é tão fácil como parece à primeira vista, dado que põe em jogo um complexo psicológico de certo aparato. Demais, se o desenho é, sobretudo, uma questão de aptitude objectiva -- qualquer pessoa pode reproduzir uma forma desde que didacticamente lho tenham ensinado --, já a cor com os seus vários problemas contende com o entendimento e a sensibilidade. Cada qual usa e combina as tintas consoante lhe ordena a pupila da sua psique. Esta porém não é inerte e inconsútil. Desenvolve-se permeável à educação e à cultura, de modo que cada artista compõe a sua personalidade, digamos mesmo, compõe o seu temperamento. Da riqueza deste substrato, vasto e confuso como o plâncton no mar, resulta ser-se pintor, estatuário e até literato ao mesmo tempo. Agora se não o artista, por muito opulento que seja o seu fundo, não entra em contacto franco e sincero com a natureza, a sua obra não vai além de artifício, suponhamos agradável, especioso, mas falho de polme.»
Aquilino Ribeiro, "Leal da Câmara-vida e Obra" (Inverno de 1951)
Muito obrigada.
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