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sábado, 2 de setembro de 2023

A estrela da tarde e o grau zero da política


 

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30 de Agosto, Quarta-Feira, pla tardinha. Tive o equívoco e tenebroso privilégio de, desprevenido, sonolento e boquiaberto, ser confrontado em directo com o espectáculo escabroso da descida do jornalismo ao nível mais rasteiro e da política ao ponto mais vácuo. O momento zen do jornalismo-de-merda e o grau zero absoluto da política. No mesmo instante e lugar. Na SIC-Notícias. Teresa Dimas recebeu Santana Lopes. Mas vamos por partes.

A SIC-Notícias é um canal de televisão por cabo que pertence ao empório de entretenimento do Grupo Impresa, detido por um conhecido oligarca da comunicação.

Teresa Dimas é a jornalista-âncora, a apresentadeira das notícias da tarde no canal. Dimas é uma vedeta do género. Tem tudo para agradar à vasta audiência do canal. Ela é a estrela-da-tarde - tudo nela é suave, doce, familiar, caloroso, redondinho, jovial, amável, luminoso. Salvo quando diz “Putin”, “Rússia”, “comunista”, “esquerda”, “Lula da Silva”, “extrema-esquerda” ou mesmo só ”trabalhadores”, “greve” ou “Papa Francisco”. Aí, tudo nela obscurece: o côncavo convexa, as covinhas achatam-se, os lábios fazem biquinho, o olhar ensombrece, as sobrancelhas circunflexam, o redondo agudiza-se, a jovialidade agresta, a doçura azeda, a amabilidade agrava-se, o calor fica gelado, o suave torna-se cortante. É com esta invulgar capacidade histriónica, aliada a uma inegável empatia, que ela, mui capciosa e habilidosamente, ajuda os espectadores a apreenderem a sua visão do mundo, a sua interpretação da notícia. A sua expressão, trejeitos e alguns àpartes funcionam, para quem assiste em casa, como aquelas placas que, exibidas ao público mercenário de certos espectáculos televisivos, indicam o momento imperativo para rir ou aplaudir (o método pode parecer muito menos grosseiro porque tudo se processa no campo subtil do não-dito - do subliminar - mas não o é, de todo, nem sequer menos degradante ou indecoroso). Teresa Dimas é uma espécie de flautista de Hamelin. Mas não são ratos quem ela encanta, manipula e conduz. É a opinião pública. Não toda, evidentemente. Apenas aquela, incauta, ingénua ou distraída, que se senta pla tardinha a ver televisão (para outros segmentos do horário a estação tem outros especialistas - divas e virtuosi - todos igualmente competentes nas suas especialidades).

Estais a gostar do filme?

- Pois é agora é que vai começar a acção. E entrar o artista convidado. Santana Lopes. O presidente da Câmara Municipal da Figueira da Foz já está sentado em frente de Teresa nos estúdios do canal. Veio de propósito da Figueira a Carnaxide a meio da semana para ser entrevistado. Está catita. Muito distinto. Fato completo, com colete. Cinza claro. A condizer com o cabelo, que lhe escorre húmido da nuca em farripas prateadas. Teresa está visivelmente encantada, voz de seda, tom receptivo, confidencial, aveludado. Pairam flores e violinos. Passam poucos minutos das sete em ponto da tarde. Santana está que nem pode, nota-se. Não é todos os dias que o presidente da Câmara da Figueira da Foz vai falar em directo a uma televisão nacional. É agora, pensei eu, incauto, que ele vai finalmente pôr a Figueira no trombone, quero dizer no mapa, ou na agenda oláoquié, é agora. É agora, pensei eu ainda, leonor pla verdura, que ele vai chamar os ministros e os secretários de estado pelos nomes, agarrá-los pelos cornos, ou plas orelhas, e dizer-lhes tudo, exigir-lhes a maternidade de volta, e a linha do Oeste e a da Beira-Alta e as oficinas da CP, mais um têgêvê para Salamanca, uma ponte nova sobre o Mondego e um aeroporto internacional, um porto oceânico e o bacalhau a pataco eu sei lá, é agora.

Qual quê. Santana começa a falar. E o que ouço é um chorrilho de banalidades a respeito do grande assunto do momento, as presidenciais - espoletado pelo pequeno Marques Mendes que, no seu pugrama de conversas em família, na SIC aos Domingos depois do telejornal, terá dado o tiro de partida da corrida a Belém, lançando-se como candidato. A dois anos e meio de distância mas decerto com aprovação e alto-patrocínio do oligarca dono da estação.

Mas que raio é que disse o Santana?, perguntais vós.

Nada. Zero. Nada de jeito. Pelo menos com interesse para quem realmente lhe paga, que são os figueirenses. E muito, imenso, das presidenciais; que não, não é candidato, ainda é muito cedo (o que significa que ainda pode vir a ser); depois dissertou filosoficamente sobre os poderes putativamente exagerados do presidente e tal, do taimingue das proposituras, dos outros putativos candidatos (todos muito boas pessoas, conhece-os a todos de pequeninos) mas sobretudo muito, imenso, e muito bem, de si próprio - o assunto favorito de alguém que nunca teve uma única ideia política mas sempre padeceu de uma compulsão mórbida para a competição sôfrega numa vida reduzida desde há muito a um abstruso e paroquial concurso de popularidade.

Quanto a Teresa Dimas, a única confissão que lhe arrancou foi qualquer coisa como ”só consigo pensar nisso”, a propósito das presidenciais, imediatamente corrigido, entre risinhos cúmplices, por um “bem, no intervalo dos meus afazeres na Câmara Municipal”. Também não lhe interessava mais nada e conseguiu-o: não descartou de todo mais um palhaço para o circo das presidenciais que o seu grupo de comunicação e entretenimento está a criar para poder vender anúncios a toda a casta de seguros, apostas desportivas, laxantes, empréstimos ao consumo, anti-depressivos, sabonetes, iogurtes, automóveis, perfumes, anti-diarreicos, detergentes, chocolates, anti-vomitativos e supermercados. Que a vida está difícil.

O jornalismo-de-merda e o puro-entretenimento são bastante dispendiosos - divas como a Dimas e pequenos comentadores com grandes ambições como Marques Mendes não devem ficar nada baratos. Não sei como é que na Figueira, mesmo com uma taxa turística a dois euros, eles conseguem.

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1 comentário:

X Dias Longo disse...

Meu caro Fernando
numa só palavra, Excelente.
Esse canal dito noticias está ao serviço do grande capital.
um abraço