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quarta-feira, 14 de junho de 2023

A lavoura do deserto, o furacão e a pitonisa


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A Figueira da Foz confronta-se há muitos anos com um problema, aparentemente insolúvel, decorrente das obras do prolongamento dos molhes (obras projectadas pelo estado para beneficiar a navegabilidade fluvial e o acesso ao porto comercial). Sem responsabilidade na obra, o município ficou desde então com o ónus de um dos seus nefastos efeitos colaterais: o crescimento exponencial da sua praia urbana, a Praia da Claridade

Assim, todos os anos, em vésperas de época balnear, o município tratava de, como se diz por cá, alindar uma praia cada vez mais interminável - o que consistia, anualmente, em revolver, crivar e terraplanar, metódica e mecanicamente, todos aqueles quilómetros cúbicos de finas areias de modo a impedir que aí medrasse a menor réstia de vegetação. O propósito destes autarcas figueirinhas do tempo do salazarismo (quando se consolidou a solução final de lavrar unicamente a praia urbana, enquanto as praias por assim dizer do campo, foram abandonadas sempre ao mais desleixado pousio) talvez se explique pela vontade de agradar ao turismo que demandava a Figueira na época (uma clientela rica, burguesa e classista, de uma urbanidade tão supostamente sofisticada como suficientemente higienista para não tolerar nada “fora do seu lugar”, como, por exemplo, um pobre no seu bairro ou a ideia de uma planta no deserto).

Pois bem, este deserto, esmeradamente cultivado ao longo de décadas, caldeou no imaginário dos figueirinhas a imagem reluzente e “limpa” do postal da praia; tornou-se, com o tempo, numa espécie de imagem d’Epinal. Muitos deles não concebem uma praia com ante-praia, dunas e vegetação. O seu entusiasmo com o “oásis do Santana” só confirma aliás a assunção arraigada da praia como um deserto, um berço de sereias depurado e terraplanado até à rebentação. Para este bom-povo qualquer vegetação que cresça no areal é uma “prcaria”, “uma vergonha”, um acinte, uma afronta aos seus valores mais intrínsecos, um ultraje aos seus ideais mais elevados, ou sentimentos mais fundos, ou lá o que é..

Há cerca de dez anos, porém, o executivo camarário de João Ataíde, contrariando a santíssima tradição, decidiu pura e simplesmente deixar de subvencionar o cultivo anual do deserto. Ao deixar de “lavrar a praia”, o município permitiu-se poupar cerca de 150 mil euros por ano (eram seiscentos mil num mandato, para o lóbi do tractor). Asperamente criticado pela oposição e por um certo beautiful people que pontifica nas redes sociais,  João Ataíde, embora canhestramente (chegou a admitir que ele próprio também não gostava de ver erva na praia), lá foi resistindo às críticas e aos remoques com o argumento de que essa simples decisão de tesouraria lhe permitiria ainda deixar crescer, espontâneo, um coberto vegetal natural que fixaria as areias (protegendo a avenida do assoreamento sazonal pelos ventos) potenciaria a biodiversidade autóctone e, a prazo, a consolidação de novas áreas aprazíveis, aproveitáveis para a fruição dos cidadãos. 

Quanto a vós não sei, mas a mim pareceu-me um “ovo de Colombo”, tão simples e evidente que era um espanto que nunca ninguém se tivesse lembrado de tal – não só sensato e avisado, mas genial - o verdadeiro sonho molhado de qualquer autarca minimamente honesto e inteligente numa época de vacas magras: a possibilidade de “fazer obra”, ambiental e social, sem literalmente fazer um corno e, sobretudo, sem gastar um chavo do erário público (recorde-se que, à época, João Ataíde via-se e desejava-se para sanear as finanças do município, devastadas anos antes pelo furacão Lopes). 

Entretanto os anos foram passando, tal como ainda outro furacão, o Leslie; João Ataíde foi pregar para outra freguesia onde acabou por falecer e António Tavares (o seu vereador do ambiente e o verdadeiro pai da ideia) de certo modo também, pois dedicou-se à literatura e nunca mais fez ondas. Mas na Praia da Claridade sopram agora, de novo, ventos uivantes. 

O furacão Lopes está de volta e, mal acabou de obter a maioria tão almejada (com um acordo, ou negócio, algo manhoso, numa loja de penhores) logo tratou de fazer saber, em comunicado no facebook, que se encontrava em posse de autorização para remover a camada vegetal que cobre “o nosso lindíssimo areal”.

No dia seguinte, Dia Mundial da Biodiversidade, foi, muito impávido e solene, inaugurar o cantinho da biodiversidade que é, tal como o nome indica, um cantinho, no parque das Abadias, deixado por capinar de propósito para o efeito. Dias depois, porém, fez saber através de outro comunicado que afinal as notícias da retoma do cultivo de deserto eram manifestamente exageradas e, porque sim e porque não ou porque talvez nem por isso ou assim, a empreitada estava suspensa até nova ordem. 

Os figueirenses mais cultivados, dos mais cínicos aos mais blasés, acharam tudo isto perfeitamente normal (eles sabem, é dos livros, que os furacões são imprevisíveis e o Lopes ainda mais - na Figueira todo-o-mundo sabe aliás que ele muda de ideias de cada vez que mija) mas o figueirinhas de lineu, que votou na Fap e se sente profundamente vexado porque brotam tomateiros na praia, deve ter ficado num estado de perplexidade catatónica. Isto, claro, depois de ter passado por um breve transe de entusiasmo triunfante e salivar e por um, igualmente fugaz, êxtase de vingativo contentamento. 

É aqui, agora (neste ponto exacto da estória) que entra a pitonisa.

- E quem caralho é a pitonisa, perguntais vós.

- A pitonisa é um blogueiro que foi mandatário e candidato na lista dos comunistas e a quem o furacão Lopes ofereceu uma sinecura de conselheiro municipal. Depois disso o pobre tomou para si o triste (ou alegre) apostolado de cantar e espalhar-por-toda-a-parte a grandeza do génio político do seu patrono e de como este é directamente proporcional à vácua mediocridade de toda a oposição, da comunicação social e do mundo em geral.

Assim, o comunicado no qual o furacão Lopes anunciava prazenteiro que estava-com-tudo para “mandar remover a camada vegetal que cobre o nosso lindíssimo areal” não foi, segundo a pitonisa, uma simples bravata armada aos cágados para animar o pagode mais reaccionário e saudoso do intigamente dos seus apoiadores, mas sim um facto político de diversão, um ruído acrescentado e genial,  uma mão-cheia-de-areia que, num gesto de magistral e maquiavélico discernimento político, tirou da cartola e lançou aos olhos da apalermada oposição e do público ignaro para que ninguém o questionasse sobre nenhum dos mais que prováveis variados graus de sordidez dos termos do acordo que lhe permitiram obter a maioria na Câmara. 

Como vedes, devido à incapacidade cognitiva de toda a gente, a pitonisa tratou de, elucidando a posteridade, traduzir para miúdos todas as subtilezas de estratégia política saídas da mente brilhante do seu príncipe encantado, que ela já vê aliás como o ajuramentado sucessor de Marcelo em Belém (imaginando-se, quem sabe também, já como chefe da sua casa civil, ou assim). Para a pitonisa, a Figueira é demasiado bisonha para a majestática sapiência do seu príncipe encantado. – Ai ai, diz ela, suspirando: sempre que ele aponta para a lua, na Figueira todos olham para os dedos papudos do meu príncipe, ai ai. 

Enfim, todo o cavaco tem o seu pachecopereira, mas a pitonisa não é o caso típico do intelectual orgânico - trata-se antes de uma espécie de organismo emocional - ou passional, pois muito mais do que uma simples ligação, há ali, nota-se, uma evidente identificação, que seria até quase comovente, se não estivesse tão nitidamente descontrolada e não fosse já suficientemente embaraçosa. 

Nota de rodapé:

Eu estou entre os que não nutrem o menor interesse em conhecer os termos do acordo que proporcionou plenos poderes ao senhor Santana Lopes. Não sinto curiosidade pelos pormenores sórdidos de qualquer negociata política. Sei de que trata esta, sei quem ganha e sei quem lerpa. Como cidadão, isso basta-me.

Já a vegetação que brota na praia, e a biodiversidade em geral, é algo que não me deixa tão indiferente.

Mas o poder exercido com base no capricho, no preconceito e na estupidez (a estupidez é a ignorância armada e couraçada) é que me inquieta profundamente. Cada vez mais.

*Ao alto, uma “expressão gráfica” de um dito popular figueirense.

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