É
realmente notável o efeito da propaganda. Mesmo espíritos aparentemente
sofisticados e exigentes, que eu julgava dotados de algum cepticismo, premissa
de todo o distanciamento, depois de uma mais ou menos larga exposição aos
efeitos de noticiário superiormente dirigido, depressa revelam os mais
baixos instintos e logo adoptam os atavismos, e os costumes maria-vai-com-as-outras,
da turba: o fanatismo normalizado, o pensamento único, a visão a preto-e-branco
e a intolerância implacável e inflexível com todos os matizes de quem pensa e se
exprime de forma distinta.
Eu
permiti-me um post no qual acentuava o non-sense e o despropósito da
guerra e a belicosidade ridícula do nacionalismo amussolinizado do
Tarass Bulba de opereta que é a nova unanimidade ocidental, um chuchuzinho
cossaco para todos os que, entre nós, comem gelados com a testa.
O
que fui fazer. A minha caixa de comentários (sobretudo no face book) encheu-se
de despropósitos insultuosos e de delírios acusatórios mais ou menos
imbecilizados pelo fanatismo. O que prova quão sensíveis e melindráveis são
afinal as almas viris mais entusiastas da guerra. Eu podia tentar explicar-lhes que o post em causa era sobre o
pulha do senhor Zé Lensqui e não sobre o desgraçado povo ucraniano, e muito
menos uma apologia do estafermo do senhor Putin. Mas reconheço que isso seria
exigir-lhes um esforço intelectual visivelmente acima das suas possibilidades
(para os prosélitos da santa-guerra quem-não-é-por-nós-é-contra-nós e
mainada porque tudo na vida deles se resume a Benficas e
Sportingues, Fonsecas e Madureiras, alecrins e manjeronas, mas sobretudo a nós
e eles). Tive até o caso de um reconhecido escritor que há tempos fez o
argumento de uma grande produção cinematográfica sobre as agruras épicas de uma
família latifundiária alentejana durante o verão quente de 1975, uma espécie de
Dr. Jivago da Amareleja, que me disse que eu devia ter vergonha. E
tenho, caro senhor. Creia que tenho imensa vergonha – de que gente que
aparentemente sabe escrever (até o faz no meu mural) afinal não sabe ler.
Mas
deixemo-nos de coisas tristes e passemos a coisas sérias que este post é sobre
Vlad, o arrombador, ou o esbardalhador. O senhor Putin.
O
senhor Putin, tal como o senhor Zé Lensqui, é um tiranete impregnado de
autoritarismo e de nacionalismo tóxico. Tudo o que o senhor Zé Lensqui
está a tentar fazer na Ucrânia (instalar o mais amplo liberalismo económico,
privatizando tudo o que ainda é público no país e oferecendo-o de bandeja à sua
clique de sponsors e empreendedores) o senhor Putin já fez na sua
mãe-Rússia - só que, não sei porquê, só aos sponsors do senhor
Putin se chamam oligarcas. Sendo ambos amantes das mais amplas
liberdades económicas, e igualmente adversários dos mínimos direitos cívicos e
laborais, é natural que toda a gente se pergunte por que raio é que eles se não
entendem. Pois não sei. Não sou especialista em geoplítica. Mas sei
alguma coisa de história das nações. E leio romances. Agora ando a ler Ivan, o
terrível. Tolstoi. Não é para beibes.
Ao
contrário da Ucrânia, que é uma nação sem história e um estado sem passado nem
instituições, a Rússia é uma nação muito antiga e tem uma longa e cabeluda
história de grande estado de muitas nações (entre as quais a Ucrânia)
guardada numa arca.
Quando
a União Soviética se desmoronou e, durante o desvario alcoólico-capitalista do
senhor Yeltsin, se dividiu em não sei quantos novos estados independentes
(entre os quais a Ucrânia) no meio de uma enorme crise social e económica, a
novel e depauperada Federação Russa e os seus milhões de russos humilhados
e ofendidos precisavam urgentemente de um novo cimento ideológico
para segurar as nações que lhe restaram e assim substituir a ideologia
do país dos sovietes, que tinha sido o cimento de uma super-potência.
Foi
aí que Vlad Putin, que, entretanto, tinha sucedido a Yeltsin, mandou buscar a
arca. A arca russa. E Vlad que, ao contrário de Yeltsin, nunca bebe nem fuma,
quando abriu a Arca, inalou.
-
O ar de séculos, fétido de miasmas de almas mortas e de espíritos; - o
suflo ácido da idolatria, da superstição e da santíssima religião, mui ortodoxa
e medieval, e dos seus popes borrachos, lúbricos e fanáticos; - a exalação
viral da violência instituída e da obediência hereditária; - o bafo quente e
gelado das entranhas da Santa Mãe-Rússia; - o hálito azedo do poder absoluto e
brutal, o mesmo hálito dos csares Ivan, o Terrível, Boris Godunov e Pedro, o
Grande; da Grandessíssima Catarina, a segunda e do não menos terrível Zé´staline,
primeiro e único; - o alento severo do homem-forte e do pai-protector.
Quando
Vlad fechou a arca, tossicou intoxicado, teve uma trip e logo a seguir uma
epifania.
Vlad,
o senhor Putin, não era ainda, nesta época, o vilão malvado e retorcido que o
ocidente iria passar a gostar de odiar. Ele vai começar por consolidar o seu
poder. Primeiro vai neutralizar o poder e influência de alguns oligarcas
demasiado enriquecidos pelos favores corruptos do seu antecessor e mentor,
Yeltsin. E fá-lo como manda a tradição na mãe-Rússia. À bruta. Confisca-lhes as
fortunas, um ou outro aparece misteriosamente falecido e os outros na prisão
por muitos anos. Assim re-nacionaliza várias empresas de petróleo e gás, o que lhe permite ir
saldando a dívida externa e fazer crescer o rendimento médio. Ainda assim, mais
de oitenta por cento das empresas privadas do país estão hoje nas mãos dos seus
oligarcas. E estes, nas suas. Vlad só poupa os que se lhe submetem. Persiste na
liberalização da economia e, mesmo que as desigualdades aumentem ao ponto de quase igualar as
do Brasil, o campeão mundial absoluto deste triste campeonato, elas
continuam a crescer alegremente ao mesmo ritmo a que a Rússia vai conquistando a confiança
dos mercados, o prestígio
internacional e até o seu status tradicional de potência
mundial, abandonado nas últimas décadas. Putin torna-se cada vez mais o homem-forte,
o pai-protector da grande mãe-Rússia. E torna-se também um exemplo
e uma inspiração, em todo o mundo, para toda aquelas sensibilidadezinhas
frígidas que só se excitam verdadeiramente com lideranças musculadas.
Vlad
Putin não é um homem grande e até tem um andar engraçado. Mas não é bailarino.
É velhaco. E obstinado. Já bateu Zé´staline em anos de permanência no Kremlin.
Sempre a assar frangos. À bruta. Contudo, ao contrário de Yeltsin, o gigantone
que só queria enriquecer e emborrachar-se, Putin é um homem pequeno com uma
grande ideia de si próprio. Uma grande, enviesada e retorcida ideia de si
próprio. Mas também do seu país. E sobretudo do seu papel na história do seu
país. Uma coisa vai com a outra. Como Napoleão, ou o Csar.
À mínima renitência ou objecção, lança sobre os
seus detractores o bafo gelado e colérico da grande Mãe Rússia, na forma da mão
pesada e implacável do seu aparelho judiciário. Clama que a pátria está em
perigo. Que cercam a Rússia. Mostra os mapas. E está. Está mesmo. A
Mãe-Rússia está mesmo cercada de bases da OTAN por todos os lados. Sente-se
humilhado e ofendido. Sente-se traído.
Enquanto, sempre aconselhado pelo FMI e plo
departamento do tesouro dos Estados Unidos, liberalizava a economia e
cultivava o seu viveiro de corruptos predilectos que seriam os parceiros de
negócios do ocidente, este cercara-o de bases militares por todos os
lados. Está furioso. Sente-se encurralado. Mas ainda havia pior.
A Ucrânia, a sua amada Ucrânia, a outra Rússia,
que se tinha tornado independente com a garantia de neutralidade e de
desarmamento nuclear, tinha afinal passado os últimos anos, fornecida pelos
países da OTAN, a armar-se até aos dentes; e o seu presidente, o actor Zé
Lensqui, ufano de estupidez natural e com as costas quentes - talvez
esquecido, ou ignorante, de que nunca se deve cutucar um urso furioso com uma
vara demasiado curta - tinha mesmo reiterado a vontade explícita do seu país se
tornar também uma potência nuclear. Irra. Foi a mosca na sopa de Vlad, o senhor
Putin.
Foi então que Vlad se lembrou que a Santa
Rússia também era uma super-potência. Era altura de passar a comportar-se como
tal. E resolveu explicar ao mundo como aprendeu a parar de se preocupar e a
amar a Bomba - fazendo exactamente (by the book) como os Estados Unidos da
América já fizeram uma porção de vezes e nunca lhes correu mal: invadir um país
independente, violando a carta das Nações Unidas e todas as leis internacionais
conhecidas.
E foi assim que Vlad, o senhor Putin, se tornou
o vilão do nosso tempo. Invadiu a Ucrânia.. E vai esbardalhar aquilo tudo até
se lambuzar. E ninguém mete a colher. É o metes. Porque Vlad tem a Bomba.
E não se importa de a usar.
.
Em 2008 fiz este desenho de Putin.
5 comentários:
A mãe-russia até agora e por razões conhecidas nunca foi madrasta, ajudou a libertar muitos povos e não tendo feito nenhum Vietnam, tem sido invadida e agredida barbaramente. Claro que tenho que afirmar, para que não me chateiem, que não gosto do Putin e adoro Biden, Obama e os Clintons...
Passaste a ter espaço
no meu espaço
com referências
que vão para além do teu traço.
Força, estou do teu lado!
E eu também, embora não seja ninguém senão uma espécie de "Jane Doe" mais mota do que viva e com vocação para o soneto...
Abraço!
Aqueles que hoje quase nos obrigam a estar todos de um lado da barricada, mais cedo do que tarde vão ter pular o muro para o lado certo da história.
força meu caro Fernando, estou ao teu lado!
Enviar um comentário