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terça-feira, 29 de março de 2022

O senhor Putin, o vilão do nosso tempo



É realmente notável o efeito da propaganda. Mesmo espíritos aparentemente sofisticados e exigentes, que eu julgava dotados de algum cepticismo, premissa de todo o distanciamento, depois de uma mais ou menos larga exposição aos efeitos de noticiário superiormente dirigido, depressa revelam os mais baixos instintos e logo adoptam os atavismos, e os costumes maria-vai-com-as-outras, da turba: o fanatismo normalizado, o pensamento único, a visão a preto-e-branco e a intolerância implacável e inflexível com todos os matizes de quem pensa e se exprime de forma distinta.

Eu permiti-me um post no qual acentuava o non-sense e o despropósito da guerra e a belicosidade ridícula do nacionalismo amussolinizado do Tarass Bulba de opereta que é a nova unanimidade ocidental, um chuchuzinho cossaco para todos os que, entre nós, comem gelados com a testa.

O que fui fazer. A minha caixa de comentários (sobretudo no face book) encheu-se de despropósitos insultuosos e de delírios acusatórios mais ou menos imbecilizados pelo fanatismo. O que prova quão sensíveis e melindráveis são afinal as almas viris mais entusiastas da guerra. Eu podia tentar explicar-lhes que o post em causa era sobre o pulha do senhor Zé Lensqui e não sobre o desgraçado povo ucraniano, e muito menos uma apologia do estafermo do senhor Putin. Mas reconheço que isso seria exigir-lhes um esforço intelectual visivelmente acima das suas possibilidades (para os prosélitos da santa-guerra quem-não-é-por-nós-é-contra-nós e mainada porque tudo na vida deles se resume a Benficas e Sportingues, Fonsecas e Madureiras, alecrins e manjeronas, mas sobretudo a nós e eles). Tive até o caso de um reconhecido escritor que há tempos fez o argumento de uma grande produção cinematográfica sobre as agruras épicas de uma família latifundiária alentejana durante o verão quente de 1975, uma espécie de Dr. Jivago da Amareleja, que me disse que eu devia ter vergonha. E tenho, caro senhor. Creia que tenho imensa vergonha – de que gente que aparentemente sabe escrever (até o faz no meu mural) afinal não sabe ler.

Mas deixemo-nos de coisas tristes e passemos a coisas sérias que este post é sobre Vlad, o arrombador, ou o esbardalhador. O senhor Putin.

O senhor Putin, tal como o senhor Zé Lensqui, é um tiranete impregnado de autoritarismo e de nacionalismo tóxico. Tudo o que o senhor Zé Lensqui está a tentar fazer na Ucrânia (instalar o mais amplo liberalismo económico, privatizando tudo o que ainda é público no país e oferecendo-o de bandeja à sua clique de sponsors e empreendedores) o senhor Putin já fez na sua mãe-Rússia - só que, não sei porquê, só aos sponsors do senhor Putin se chamam oligarcas. Sendo ambos amantes das mais amplas liberdades económicas, e igualmente adversários dos mínimos direitos cívicos e laborais, é natural que toda a gente se pergunte por que raio é que eles se não entendem. Pois não sei. Não sou especialista em geoplítica. Mas sei alguma coisa de história das nações. E leio romances. Agora ando a ler Ivan, o terrível. Tolstoi. Não é para beibes.

Ao contrário da Ucrânia, que é uma nação sem história e um estado sem passado nem instituições, a Rússia é uma nação muito antiga e tem uma longa e cabeluda história de grande estado de muitas nações (entre as quais a Ucrânia) guardada numa arca.

Quando a União Soviética se desmoronou e, durante o desvario alcoólico-capitalista do senhor Yeltsin, se dividiu em não sei quantos novos estados independentes (entre os quais a Ucrânia) no meio de uma enorme crise social e económica, a novel e depauperada Federação Russa e os seus milhões de russos humilhados e ofendidos precisavam urgentemente de um novo cimento ideológico para segurar as nações que lhe restaram e assim substituir a ideologia do país dos sovietes, que tinha sido o cimento de uma super-potência.

Foi aí que Vlad Putin, que, entretanto, tinha sucedido a Yeltsin, mandou buscar a arca. A arca russa. E Vlad que, ao contrário de Yeltsin, nunca bebe nem fuma, quando abriu a Arca, inalou.

- O ar de séculos, fétido de miasmas de almas mortas e de espíritos; - o suflo ácido da idolatria, da superstição e da santíssima religião, mui ortodoxa e medieval, e dos seus popes borrachos, lúbricos e fanáticos; - a exalação viral da violência instituída e da obediência hereditária; - o bafo quente e gelado das entranhas da Santa Mãe-Rússia; - o hálito azedo do poder absoluto e brutal, o mesmo hálito dos csares Ivan, o Terrível, Boris Godunov e Pedro, o Grande; da Grandessíssima Catarina, a segunda e do não menos terrível Zé´staline, primeiro e único; - o alento severo do homem-forte e do pai-protector.

Quando Vlad fechou a arca, tossicou intoxicado, teve uma trip e logo a seguir uma epifania.

Vlad, o senhor Putin, não era ainda, nesta época, o vilão malvado e retorcido que o ocidente iria passar a gostar de odiar. Ele vai começar por consolidar o seu poder. Primeiro vai neutralizar o poder e influência de alguns oligarcas demasiado enriquecidos pelos favores corruptos do seu antecessor e mentor, Yeltsin. E fá-lo como manda a tradição na mãe-Rússia. À bruta. Confisca-lhes as fortunas, um ou outro aparece misteriosamente falecido e os outros na prisão por muitos anos. Assim re-nacionaliza várias empresas de petróleo e gás, o que lhe permite ir saldando a dívida externa e fazer crescer o rendimento médio. Ainda assim, mais de oitenta por cento das empresas privadas do país estão hoje nas mãos dos seus oligarcas. E estes, nas suas. Vlad só poupa os que se lhe submetem. Persiste na liberalização da economia e, mesmo que as desigualdades aumentem ao ponto de quase igualar as do Brasil, o campeão mundial absoluto deste triste campeonato, elas continuam a crescer alegremente ao mesmo ritmo a que a Rússia vai conquistando a confiança dos mercados, o prestígio internacional e até o seu status tradicional de potência mundial, abandonado nas últimas décadas. Putin torna-se cada vez mais o homem-forte, o pai-protector da grande mãe-Rússia. E torna-se também um exemplo e uma inspiração, em todo o mundo, para toda aquelas sensibilidadezinhas frígidas que só se excitam verdadeiramente com lideranças musculadas.

Vlad Putin não é um homem grande e até tem um andar engraçado. Mas não é bailarino. É velhaco. E obstinado. Já bateu Zé´staline em anos de permanência no Kremlin. Sempre a assar frangos. À bruta. Contudo, ao contrário de Yeltsin, o gigantone que só queria enriquecer e emborrachar-se, Putin é um homem pequeno com uma grande ideia de si próprio. Uma grande, enviesada e retorcida ideia de si próprio. Mas também do seu país. E sobretudo do seu papel na história do seu país. Uma coisa vai com a outra. Como Napoleão, ou o Csar.

À mínima renitência ou objecção, lança sobre os seus detractores o bafo gelado e colérico da grande Mãe Rússia, na forma da mão pesada e implacável do seu aparelho judiciário. Clama que a pátria está em perigo. Que cercam a Rússia. Mostra os mapas. E está. Está mesmo. A Mãe-Rússia está mesmo cercada de bases da OTAN por todos os lados. Sente-se humilhado e ofendido. Sente-se traído.

Enquanto, sempre aconselhado pelo FMI e plo departamento do tesouro dos Estados Unidos, liberalizava a economia e cultivava o seu viveiro de corruptos predilectos que seriam os parceiros de negócios do ocidente, este cercara-o de bases militares por todos os lados. Está furioso. Sente-se encurralado. Mas ainda havia pior.

A Ucrânia, a sua amada Ucrânia, a outra Rússia, que se tinha tornado independente com a garantia de neutralidade e de desarmamento nuclear, tinha afinal passado os últimos anos, fornecida pelos países da OTAN, a armar-se até aos dentes; e o seu presidente, o actor Zé Lensqui, ufano de estupidez natural e com as costas quentes - talvez esquecido, ou ignorante, de que nunca se deve cutucar um urso furioso com uma vara demasiado curta - tinha mesmo reiterado a vontade explícita do seu país se tornar também uma potência nuclear. Irra. Foi a mosca na sopa de Vlad, o senhor Putin.

Foi então que Vlad se lembrou que a Santa Rússia também era uma super-potência. Era altura de passar a comportar-se como tal. E resolveu explicar ao mundo como aprendeu a parar de se preocupar e a amar a Bomba - fazendo exactamente (by the book) como os Estados Unidos da América já fizeram uma porção de vezes e nunca lhes correu mal: invadir um país independente, violando a carta das Nações Unidas e todas as leis internacionais conhecidas.

E foi assim que Vlad, o senhor Putin, se tornou o vilão do nosso tempo. Invadiu a Ucrânia.. E vai esbardalhar aquilo tudo até se lambuzar. E ninguém mete a colher. É o metes. Porque Vlad tem a Bomba. E não se importa de a usar.

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Em 2008 fiz este desenho de Putin.

Agora fiz o que está reproduzido acima. Suspeito que seja isto um retrato acabado.
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5 comentários:

cid simoes disse...

A mãe-russia até agora e por razões conhecidas nunca foi madrasta, ajudou a libertar muitos povos e não tendo feito nenhum Vietnam, tem sido invadida e agredida barbaramente. Claro que tenho que afirmar, para que não me chateiem, que não gosto do Putin e adoro Biden, Obama e os Clintons...

Rogério G.V. Pereira disse...

Passaste a ter espaço
no meu espaço
com referências
que vão para além do teu traço.

Força, estou do teu lado!

Maria João Brito de Sousa disse...

E eu também, embora não seja ninguém senão uma espécie de "Jane Doe" mais mota do que viva e com vocação para o soneto...

Abraço!

X Dias Longo disse...

Aqueles que hoje quase nos obrigam a estar todos de um lado da barricada, mais cedo do que tarde vão ter pular o muro para o lado certo da história.
força meu caro Fernando, estou ao teu lado!

Fernando Ribeiro disse...
Este comentário foi removido pelo autor.