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terça-feira, 9 de junho de 2020

Um artista grande e uma cidade pequena


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É assim a vida, e a cultura, na Figueira da Foz.
A Figueira, convenhamos, não é Paris, que comprou um palácio do século dezassete (o Hotel Salé) para abrigar a colecção pessoal de Picasso, cedida ao estado francês pelos herdeiros do artista. A Figueira nem sequer é Chaves (sim, a cidadezinha transmontana) que encomendou ao arquitecto Siza Vieira um projecto de Museu e depois edificou-o nas margens do Tâmega, especificamente para mostrar o espólio de um dos seus filhos mais ilustres, Nadir Afonso. A verdade é que a Figueira da Foz nem sequer é a Tocha.
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É verdade. A Figueira da Foz acaba de perder o espólio artístico de Mário Silva. Para a Tocha, freguesia de Cantanhede. Até veio nas Beiras.
Segundo o filho do artista, “Tiveram a amabilidade de acolher as obras que estavam debaixo do palco do CAE, sem as melhores condições. Entretanto, propuseram a ideia da casa-museu e eu aceitei. Na altura, falei com os autarcas de Coimbra e da Figueira da Foz, mas não deram uma resposta”.
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Mas vamos lá ver do que se trata. Então é assim: Se Mário Silva não é Picasso, nem sequer Nadir Afonso, também é verdade que os artistas e as cidades não são como os nabos, ou como as abóboras, não se comparam, ponto. E Mário Silva foi um artista notável, outro ponto.
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Mário Silva teria gostado que a cidade que escolheu para viver e trabalhar tivesse comprado um palácio para expor as suas obras. Também teria apreciado que a Figueira tivesse encomendado um projecto de museu a um arquitecto famoso para o mesmo efeito. Oh sim. Aposto que teria ficado desvanecido. 
A verdade é que, embora não fosse podre de rico como Picasso, Mário Silva também apreciava a vida, o humor e a convivialidade e também coleccionava arte. 
O Mário viveu, desde os anos setenta, num casebre em Lavos que era o seu palácio e atelier, com a mulher que amou e o filho e uma data de bicharada entre a qual um cão mal-humorado que ele chamava pinto-da-costa. 
Durante toda a sua vida produtiva foi trocando ou adquirindo obras a outros artistas (na verdade, quase todos os seus coetâneos) disto resultando uma colecção particular (escolhida a dedo, ao seu gosto pessoal) do melhor da arte portuguesa da segunda metade do século vinte. É pouco?
- A isto soma-se as obras da sua própria produção que, também como Picasso, Mário reservou para si próprio, ou seja, que não quis vender e que correspondem ao melhor das suas várias fases criativas. 
É disto que se trata quando se fala do espólio de Mário Silva e que o grunho imbecil (não acho palavras mais apropriadas, ajudem-me) que é presidente da Câmara da Figueira da Foz sugeriu que fosse exposto no Museu etnográfico de Lavos. Trata-se do mesmo acervo de obras cuja integridade ficou ameaçada quando o furacão Leslie atingiu duramente a casa do artista e que a Junta de freguesia da Tocha acolheu generosamente e para o qual, com a ajuda do município de Cantanhede, vai agora criar uma casa-museu.
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Mas se os artistas não são todos iguais, com as cidades acontece exactamente o mesmo. Há algumas, como a Figueira, que julgam que criar polos de atractividade (no linguajar dos marqueteiros do desenvolvimentismo sustentado figueirinhas) é licenciar a mercearia por grosso e a esplanada à beira-mar. Ah, e também se aposta na decoração de exteriores. Na street art. Contrataram um gajo de Setúbal para, por apenas nove mil e quinhentos aéreos, pintar no paredão da avenida uns camarões e uns carapaus que parecem fresquíssimos, acabadinhos de sair de um folheto do Lidl. Lindo. Isso sim atrai turismo de cólidade. O turismo do pneu.
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A cidade não tem transportes públicos, mas não faz mal porque com o acesso fácil ao crédito agora todo o povo das freguesias tem transporte particular. 
Assim, aos domingos, todos os domingos quando está de sol, a cidade enche-se de automóveis. Vem cada um no seu, ou em família, em comboinho. 
Vêm ver o mar e, na volta, as gandes supefíces
Só páram na avenida oceânica porque não há parcómetros e nos supermercados porque o aparcamento é grátis. E assim sucessivamente. Circulando sempre. 
Porque na Figueira não há (nem haverá) mais nada para ver.
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