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sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Para acabar de vez com a “cultura” figueirinhas


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“A Figueira é uma cidade com oferta cultural de grande qualidade. Há um pouco de tudo, desde a programação eclética do CAE (concertos, exposições, cinema, etc.) até à oferta de teatro amador e música pelas várias coletividades, entre centenas de eventos que se realizam um pouco por todo o concelho. Temos ainda uma boa biblioteca municipal, um museu que se vai renovando, e instituições privadas que dinamizam a vida cultural da cidade.

Desponta uma nova geração que mantém viva a chama cultural do concelho. Gente que quer discutir as questões do nosso tempo, sem entrar em partidarismos ou tentar retirar dividendos políticos desse seu esforço. Devemos acarinhar estes jovens, participando, reconhecendo a importância da cultura como forma de libertação individual e coletiva.”



O texto em epígrafe podia ser uma das redacções do menino Zequinha se por acaso este, depois de uma trip de cogumelos esquisitos, escrevesse nos jornais o relato as suas viagens a lugar nenhum. Mas não. Trata-se de um delirante e alucinado texto publicado no “jornal” As Beiras por João Vaz, um circunspecto engenheiro e ex-vereador que vive lá (na Utopia, porra) e, feliz e despreocupado, conta como foi que tudo aconteceu (segundo a sua versão dos factos tudo se deve aos postulados visionários do ex-vereador da cultura António Tavares).
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Ora, a realidade não existe tal como é relatada na redacção delirante do senhor ex-vereador. Ou seja, o relato do senhor Vaz é demasiado bom para ser verdade; talvez porque a verdade seja demasiado má para ser relatada. E isto podia o sr. Vaz aferi-lo nas palavras avisadas do seu príncipe encantado, o cavaleiro da alegre figura que, aquando do lançamento da sua obra “Arquétipos e Mitos da psicologia social figueirense,” decretou solenemente que na Figueira “falta massa crítica interna”.
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A verdade é que a Figueira não é a Utopia, um lugar-nenhum. Se a Figueira, aliás, é algum lugar - perdoem-me as almas sensíveis - é um lugar ruim; um pardieiro; uma choldra: uma distopia. E isto não podia deixar de se reflectir na sua, digamos assim, “cultura”. Se não, vejamos: um grande escritor brasileiro injustamente esquecido e agora felizmente em vias de ser “recuperado”, Lima Barreto, disse uma vez que o seu país “não tem povo, tem público”. Queria ele com isto dizer, creio, no início do século vinte, que os brasileiros não agiam, só assistiam. Com a Figueira acontece o mesmo (tiens, também é verdeamarela), só que em pior: a Figueira também não tem público. Não age nem assiste. Os mirones e os papalvos que assistem às inaugurações vêm todos das freguesias; é o chamado “turismo de proximidade”. Não existe, aliás, outro tipo de turismo. Não há cá nada para ver. Na Figueira não há agricultura (deve ser o único concelho deste país meridional que não produz vinho nem qualquer outra cultura diferenciada), nem indústria. Nem comércio local. Não existe um jornal. Nem sequer uma livraria digna desse nome, ou uma galeria de arte. Ninguém vai ao Museu. Ou à Biblioteca. O cinema está às moscas.
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Oferta cultural de grande qualidade?? - A noite dos esqueletos?, a charanga a cavalo?, o jantar dos não-sei-quantos talheres, senhor engenheiro?
“Programação eclética do CAE”, senhor Vaz?? – Sem produção própria, qual o critério de escolha dos espectáculos programados?
Oferta de Teatro amador”??? –  Para quem cuja cultura teatral estagnou em Ramada Curto, senhor engenheiro Vaz, talvez.
Uma boa biblioteca municipal”?? - Uma que perdeu o espólio doado por um dos vultos da cultura portuguesa do século vinte para um museu de Vila Franca de Xira e onde agora é impossível aceder a uma única obra desse autor?
Um museu que se vai renovando”?? - Qual o orçamento anual desse museu para aquisições, e o critério, já agora, senhor engenheiro?
Instituições privadas que dinamizam a vida cultural??” – Quais? quantas?? Aonde, aonde?
Uma nova geração que mantém viva a chama cultural”’? - Quem? Quando? Quantos são, quantos são??
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Mas não há como um facto - ou uma atitude, um spleen - para explicar um fenómeno.
A actriz e encenadora Ana Madureira conta aqui um episódio bastante eloquente, que pode ser resumido assim: Ana integra a Troupe Tira-teimas que levou à cena na Sociedade Filarmónica 10 de Agosto a peça em um acto “O pedido de casamento”, de Tchekov, que estreou com casa cheia em Agosto, no dia do aniversário da colectividade. Estando agendados mais dois espectáculos, a Troupe foi entretanto notificada do seu cancelamento em virtude de a alocação do palco, dos meios técnicos, humanos e logísticos da colectividade estarem comprometidos com outras produções. Posteriormente os meios voltaram a ser disponibilizados mas apenas na véspera das datas escolhidas unilateralmente pela colectividade. Em tais condições, a Troupe, constituída inteiramente por amadores, rejeitou, naturalmente, a proposta.
Resumindo: a centenária 10 de Agosto, que se auto-proclamava orgulhosamente de “a teimosa”, por nunca ter desistido do teatro amador, finalmente desistiu. Terceirizou o teatro. Agora dedica-se ao aluguer de instalações e à "prestação de serviços". As “outras produções” em que supostamente estariam alocados o palco e os meios técnicos, humanos e logísticos era afinal o inenarrável tólquechô de variedades do Jotalves, o “jornalista” responsável pela página que um jornal de Coimbra dedica ao noticiário da Figueira. A mesma página onde o senhor Vaz escreve imbecilidades.
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Concluíndo: se “bactérias num meio é cultura”, é este o meio cultural da Figueira.
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