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quarta-feira, 26 de abril de 2017

A Dendrolatria

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Para ser grande, sê inteiro: nada
          Teu exagera ou exclui.

Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
          No mínimo que fazes.

Assim em cada lago a lua toda
          Brilha, porque alta vive 


Ricardo Reis, in "Odes" 
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Descobri a palavra há poucos dias, através de António Amaro das Neves, no “Memórias de Araduca”, magnífico blogue sobre a sua cidade, Guimarães (também na barra lateral, em ligação permanente). Neves, por sua vez, aprendeu-a do grande Ruben Fonseca, outro dendrólatra confesso, e escreveu sobre isso a propósito de mais um projecto de atentado ambiental na sua cidade.
Enquanto isto, na Figueira discute-se (pouco, mal e porcamente, como sempre) a proposta do novo PDM do presidente Ataíde - uma espécie de nova jihad dos novos patos bravos à cidade - ainda que com as mesmas habituais cedências a interesses instalados e os mesmos concomitantes atentados ao ambiente, ao bom-senso e ao bom-gosto. Eu tenho-me dedicado à pintura. Encontrei um novo motivo. Decidi pintar uma árvore; não há muitas no meu trabalho e não quero merecer o reparo terrível que alguém apontou a Camilo, ”não existe uma única árvore em toda a sua obra”. Klimt, no início do século vinte, fez maravilhas com motivo tão prosaico. E Hockney, recentemente, também. A foto acima documenta o quadro numa fase ainda incipiente (o meu trabalho é muito lento, por vezes penoso e absorvente, o que explica o relativo abandono do blogue, pelo qual desde já peço desculpa aos seus seguidores mais fiéis).
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Confesso que sempre gostei de árvores. No princípio, na infância, com uma muda fascinação e, com os anos, com profundo respeito e por fim com uma autêntica e sincera devoção. É verdade, sou um dendrólatra. Não o escrevo porém, agora que conheço a palavra, com particular orgulho. Não me orgulho aliás por ser como sou, limito-me a sê-lo. Como as árvores.
O segredo, e o mistério, das árvores é o tempo – e o silêncio. Como da vida, e da pintura. Esse mistério, ou segredo, é uma longa paciência da qual só se retira algum exemplo vivendo, observando, reflectindo, fazendo.
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O quadro que tenho vindo a compôr – é disso que se trata, de uma composição – é pois sobre esse objecto da minha idolatria: uma única árvore (na verdade, uma das minhas nespereiras) com todas as suas folhas, as vivas e as mortas. Num rectângulo em pé, o tronco cresce-lhe desde a base e a copa ocupa-lhe dois terços da superfície superior tomando a forma vaga de um quadrado, deitado, do qual pende um baloiço. O todo quase só numa cor, ainda que em todas as suas declinações tonais, com breves e pacientes pinceladas em sucessivas e diáfanas velaturas.
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Mas não é apenas isso. Tal como a imagem que uma árvore deixa ver de si própria é apenas metade (a outra está subentendida na paisagem, subterrânea), nesta pintura também estou eu, inteiro, a minha vida, a minha casa, enfim o meu caso - ainda que também não à superfície.
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E este quadro, além de ter sido o feliz achado de um novo motivo, é também um lamento - um triste e desalentado lamento - por viver num tempo, numa cidade e entre uma gente que convive tão alegre e tão pacificamente, em alarve harmonia, com uma classe política tão velhaca e tão medíocre. E também um protesto - contra a estupidez de um poder autárquico comandado por um capitão Ataúde com o freio nos dentes para aterrar toda a várzea da cidade em grandes superfícies comerciais; um poder local cuja visão de pugresso se permite - pla voz inefável de Ana Carvalho, a vereadora do urbanismo, a propósito da alienação dos terrenos do horto municipal a um empório de mercearias - esta abóbrinha de auto-satisfação imbecil e desmiolada que não ficava mal a um especulador imobiliário: “Quanto mais se valorizarem os terrenos, melhor para a câmara”.
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Lamento que é apenas um suspiro, ou murmúrio, como os das árvores, e sobre cujos possíveis efeitos, ou repercussões, confesso, não tenho ilusões. Num concelho cujo município tem cada vez menos funções (o abastecimento de água potável, a recolha do lixo e agora até já o tratamento dos espaços públicos e do património ambiental, são negócio de privados) a sua única atribuição parece ser a recolha de fundos (a venda de património, como uma agência imobiliária) para pagar os serviços.
A verdade é que o povo não lê. O povo nem sequer - diverte-se na lama, como referiu Cesário Verde – refocila no futebol e, entre bjecas, tramossos e minuíns, na vida íntima das celebridades, na sordidez dos casos de polícia, nas gordas do Correio da Manhã, nos milagres dos pastorinhos, no Face-Book, passeia a família no xópingue ao Domingo, apoia a selecção e festeja o 25dAbril com corridas de carretas.
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Quanto a mim, ainda que não tenha atingido ainda a sua sabedoria, tento fazer como as árvores. Elas dão as suas folhas, flores e frutos sem pensar a quem ou para que possam servir. Sem ambição nem esperança, sem religião nem moral - até ao apodrecimento, esse fim, ou princípio, inexorável de tudo.
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