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segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

o legado de Ataíde – o ataidismo e o triunfo da pessegada

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o que vale a pena ser feito vale a pena ser feito bem
Nicolas Poussin
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A Figueira da Foz é, infeliz e consabidamente, uma cidade bastante pobre no que diz respeito ao património de arte pública. O pouco que tem de inegável qualidade estética deve-se mais à acção voluntariosa de alguns, poucos, cidadãos do que a iniciativa dos poderes locais instituídos - o caso, por exemplo, do pequeno busto em bronze de David de Sousa, de Leopoldo de Almeida, com arranjo arquitectónico do arquitecto Carlos Ramos, iniciativa de alguns amigos do músico. Ali, à entrada do Bairro Novo, a dimensão escatológica do desprezo público que os figueirenses votam à Arte e à Memória sublima-se no relvado fronteiro, emblematicamente transformado pelo uso num verdadeiro cagódromo canino.
A estátua de Manuel Fernandes Tomás, na praça Nova, é aliás a única excepção e a única de dimensão verdadeiramente monumental (três metros de altura de bronze sobre um pedestal também imponente). Apenas tornada possível por uma subscrição popular (em 1907, para a qual contribuiu, dizem, o próprio rei D. Carlos), desencadeada por quatro operários cujos nomes ainda lá estão, em letras de bronze, sobre a pedra do pedestal. Inaugurada em 1917, a estátua não é a habitual imagem majestática de um seráfico legislador ou de um estadista triunfante mas sim a de um revolucionário em acção, toda inconformismo, movimento e inquietação; a mesma inquietação que movia os quatro operários que a encomendaram e que inspirou a ousada sensibilidade do portuense Fernandes de Sá, um notável e quase esquecido escultor a quem posteriormente não chegaram as encomendas do Estado Novo e que morreu amargurado em 1959 porque nunca lhe permitiram sequer que ensinasse nas Belas-Artes.
Mas existe ainda, claro, o exuberante pelourinho da Praça Velha; o admirável memorial modernista a João de Barros, do arquitecto Alberto Pessoa; o busto solene de António Santos Rocha, de Raul Xavier, agora nas Abadias e, ainda de Leopoldo de Almeida, dois frizos em baixo-relevo sobre as portas da Caixa Geral de Depósitos; e dois painéis em pastilha de vidro: o de António Lino, no Tribunal, e o de Zé Penicheiro, em notório estado de degradação, na companhia das águas. Convenhamos no entanto que é muito poucochinho, e pobrezinho, mesmo para uma cidade com apenas cento e trinta anos. - Ah!, existe ainda uma soberba peça do meu amigo João Sotero, que ele, num achado genial, deu a forma de um totem a que chamou “desleixo” e que representa precisamente, com desencantada ironia, e algum sarcasmo bastamente escarninho, esta relação dos figueirenses com o seu espaço público comum.
Esquecida, ou negligenciada, pelo poder central durante meio século - não existe na Figueira e em todo o seu concelho qualquer monumento ou sinal público da política do espírito do Estado Novo - nem heróis da expansão, nem mártires da evangelização (nem sequer o imbecil e sacramental bronze do soldado colonial com a G3 em punho e o pretito às costas em missão civilizadora, do estertor do regime). Isto talvez explique porque na Figueira, e entre figueirinhas, não existe o salutar hábito de celebrar o herói cívico - ou a gesta colectiva, ou o exemplo insigne, ou o poeta excelso, etc. - de forma elevada, pela Arte; nem a tradição da educação visual desde piquenos; nem o gosto, entre os mais crescidos, da contemplação da simples beleza das formas pela sublimação da emoção ou pelas subtilezas da alegoria. A verdade é que o figueirinhas não gosta de História, prefere a anedota. Não aprecia o Belo, nem o Misterioso, nem o Único, nem o Autêntico - deleita-se com o bonitinho, o vulgar, a réplica, o sentimental. Detesta ópera mas adora telenovela. Abomina o que é excepcional, transcendente, elevado. Prefere tudo ao seu nível: banal, literal, raso, acessível. É a esta pitoresca estética do acessível que os poderes locais tentam agradar.
Vai daí, recuperada a democracia e o poder local, a cidade rapidamente recuperou atraso e o concelho é, hoje, no que concerne à arte pública monumental ou ornamental (estátuas, memoriais, murais, etc.), um verdadeiro museu, mas ao gosto do freguês, ou seja ao peculiar gosto do eleitor local. - Toda esta pessegada obscena, incluindo a que grassa plas freguesias, que é de arrepiar, teve o alto-patrocínio do poder local democrático. Trata-se, portanto, de obra-feita de autarcas eleitos. Uma verdadeira galeria do medonho, a céu aberto, que tem de tudo, como um bazar de horrores: do francamente patético do busto de José Coelho Jordão, herança de Santana Lopes, (meio corpo numa bandeja, na rotunda do Parque de Campismo) ao amplamente ridículo da estátua do Pescador, em Buarcos, do tempo de Aguiar de Carvalho, (uma bizarra figura de plasticina a cagar no alto de um cocuruto de betão armado dentro de um tanque no meio de uma rotunda) e ao ridiculamente pretensioso triunfalismo da estátua do centenário, da gestão de Joaquim de Sousa - num estilo estalinista vagamente requentado ou aprés la lettre que parece ter saído de uma qualquer merdalávia nos confins da antiga União soviética e de aí ter servido para comemorar mais um bizantino plano quinquenal (bem sei que Dorita Castel-Branco é uma boa escultora mas todos temos maus dias, ninguém é perfeito – a Monica Belluci certamente também se peida mas tem o cuidado de jamais o fazer em público), passando pelo grotesco do inenarrável (do consulado de Duarte Silva) e indiscritível monumento a Baden-Powell (esse mesmo, o oficial e cavalheiro do império britânico que gostava de acampar com rapazinhos).
Agora no entanto que se aproximam de novo as eleições, é tempo de avaliar o legado de dois mandatos consecutivos do autarca de turno, João Ataíde.
Ataíde é um ex-juiz para quem as leis são para interpretar. Como as partituras. Isso permite-lhe, por exemplo, isentar de taxas um determinado espéctáculo por o achar de interesse público. Também lhe permite reunir à porta fechada, encerrar o hospital público dentro de um parque de estacionamento privado e condecorar com a medalha municipal do altruismo um aviário cujo primeiro accionista é conhecido plo petit nom de “o negreiro”. Ou seja, governar a Figueira, para ele é música. Mas o seu legado não se fica por aquí.
Como já enunciei acima, entre as idiossincrasias do beautiful people que elege o poder local na Figueira figura a crença, ou a “ideia feita” que uma das atribuições do autarca eleito é “alindar” a choldra que habitam. Ora foi isso mesmo que Ataíde fez. Mas fê-lo cumprindo à risca as rigorosas regras da estética do acessível que mencionei acima. E assim elevou a pessegada a nunca vistas cumeeiras .
Começou com o busto do Aguiar e nunca mais parou. Ataíde já inaugurou mais bustos, memoriais, murais, estátuas, monumentos e arranjos e re-arranjos urbanísticos e paisagísticos do que todos os seus antecessores juntos. O seu legado é um prodígio político no apoio à arte pública e ao empreendorismo na decoração de exteriores. Um frenesim de arrojo e de bom-gosto cujos méritos curiosamente um articulista avençado do “jornal” As Beiras atribuiu, embevecido, a António Tavares, o vereador da cultura. Na Figueira nunca há unanimidade: nem quanto ao nome do pai da criança.
A verdade porém é que o ataídismo, como qualquer outro ismo de índole populista, não foi possível apenas pela vontade de um homem, é desígnio de muitos – tem sido um autêntico trabalho de equipa. Assim, embora Tavares seja o patinho-feio do ataidismo, aquele que os figueirinhas gostam de odiar, a verdade é que foi ele que lhes restituiu a escultura mais amada e que melhor os representa, sequestrada por Duarte Silva desde as obras do jardim público num pátio interior do museu municipal. A obra não é nenhum Miguel Ângelo, nem sequer um Henry Moore, trata-se apenas de uma réplica em cimento de uma peça em barro que o escultor Laranjeira Santos submeteu a avaliação no exame de escultura do seu curso de Belas-Artes. Um nu académico algo rígido cuja pose languidamente reclinada o povo figueirinhas primeiro estranhou, depois entranhou e logo a seguir, na sua infinita perspicácia, crismou como Preguiça, e assim interpreta desde então, e como talvez nenhuma outra, o verdadeiro spleen da cidade.
Mas se António Tavares é o éderzito da equipa de Ataíde, o seu crestianoreinaldo é sem dúvida, José Tavares - ou José Esteves, como é mais conhecido - o presidente da junta de Buarcos. Tavares, o José, ou José Esteves, é um verdadeiro pontadelança da pessegada. Um concretizador nato que leva o ataídismo aos píncaros. Ousado. Inovador. Criativo. Incansável. Pertinaz. A vida em Buarcos é uma festa permanente. Nem nos anos negros da crise faltou a iluminação festiva. No Natal e no S. João. No Natal há presépios por todo o lado, com palhinhas verdadeiras. Na Páscoa cruzes e palmas em todas as encruzilhadas, a cidade parece o vale dos caídos, é lindo (nunca como nos dias do ataidismo os sinais exteriores da religiosidade popular estiveram tão presentes e em todo o lado). E no S. João, ah no S. João. E depois, ou antes, é a feira dos piratas, e a medieval. E procissões. É só eventos. E animação claro, muita animação. E entre as estações, o carnaval, que dura todo o ano. Todo um modo de vida, subvencionado pla autarquia.
Mas Esteves é sobretudo incansável no incentivo ao empreendorismo na arte pública. Sempre ousado e numa atitude insólita e pioneira, elevou o ready-made à dignidade de monumento (pegou num absoleto farol de socorro a náufragos e espetou-o numa rotunda - assim nasceu a rotunda do farolito, como o povo lhe chama);
e a instalação (o monumento ao mineiro do Cabo Mondego, com a sua assemblage inacreditável de ferramentas, é um must de ousadia e de literalidade – só lá falta, para a anedota sentimental ser ainda mais explícita, o capacete com o coto de vela, o bornal da merenda e a gaiola com o passarinho morto).
Esteves ousou intervir no muro do cemitério - é preciso abrir aqui um parêntesis (para ressalvar que é sempre muito problemática a intervenção em espaços que o povo considera sagrados – há tempos um presidente da junta quase foi linchado porque permitiu que uma entidade ligada ao património mandasse rebocar dois baluartes da muralha de Buarcos. Ninguém quer saber que a muralha era árabe e que o reboco consolida e impede a desagregação de construções de pedra desigual. Para o bom povo a muralha quer-se au naturel, com a pedra à vista e as juntas pintadinhas de branquinho de preferência, como era nos livros da terceira classe e mainada. Nunca mais ninguém tentou consolidar a muralha sagrada; é o consolidas, filho).
Entretanto o painel de ladrilhos no muro do campo santo foi um sucesso. Desenho esquemático e cor da anemia (como decerto convém ao espírito do lugar). Sincrético. E sintético. De ir às lágrimas. Uma verdadeira elegia à horizontalidade. Parece um Malangatana desenhado com as mãos atadas e os olhos vendados e pintado com os pés com uma paleta frígida;
Esteves atreveu-se também com o do it youself, o monumento que não carece de artista; é assim: Esteves quer e a obra nasce. Assim nasceu o monumento presumo que às cantarinhas (um poço fake, em tamanho natural com roldana e tudo, também fake, na rotunda da cantarinha).
Tudo isto faz da Figueira um case-study da arte pública; ou vá lá, da decoração de exteriores. Hão-de cá vir sharters de especialistas para estudar o fenómeno.
Mas Esteves não pára. Agora já ameaçou com um monumento ao Infante D. Pedro. Esse mesmo. O duque de Coimbra. Senhor de Buarcos. O filho mais esperto de D. João I. Irmão de D. Duarte. Regente em nome de Afonso V. Um príncipe da idade média. O povo de Buarcos, descendente dos servos da sua gleba, e os seus representantes socialistas não o esquecem. É ele o herói cívico cuja memória querem ver perpetuada em estátua.
Lá vem mais pessegada. Sim, porque Ataíde espera ser reeleito para um último mandato. E dizem que Esteves vai a vereador. 
Isto parece que muda aos três. Mas a pessegada é que nunca mais acaba. 
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1 comentário:

cid simoes disse...

Já nos estava a fazer falta!