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domingo, 8 de maio de 2016

O autarca modelo e a maioria social

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um dos maiores inimigos de um homem de espírito é o tédio 
Charles Baudelaire

De regresso à pintura. Ando há mais de um mês às voltas com um auto-retrato. Nada de muito grandioso, um metro e dez por oitenta. Eu, no atelier, uma tela branca e a minha cadela. Uma cena doméstica. Coisa íntima, de género. Fundo escuro. Perspectiva cavaleira (de cima para baixo, como se examina os insectos). Tons glaucos. Cinzas. Verdes. Pérolas. Manchas nítidas. Contrastes surdos, linhas sinuosas. Ênfase nas diagonais.
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Todavia, mesmo quando não se tem hábitos mundanos, qualquer veleidade de auto-análise é perturbada pelo rumor do mundo. Esse ruído entra-me em casa pela rádio, pela televisão, pela net e até pelas janelas. Desde que se abriu a cratera na Ácatorze adeus sossêgo, o trânsito passa-me agora todo à porta - um filhodaputa de um inferno, de manhã à noite (e aos fins de semana ainda é pior: comitivas intermináveis de pacóvios a passeio, em família, para ver a ponte militar). Perturba-me a introspecção. Desinquieta-me a cadela, que não sossega para a pose. A minha rua – um troço da ex-nacional 111- também está em obras (trezentos mil dele, em alegre e publicóprivada parceria com a Brisa).
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O buraco da Ácatorze pôs de novo a Figueira no mapa. A abrir os noticiários. Como os figueirinhas gostam. Contudo a cratera pôs também a nu a xelência da inginheiria portuguesa. A competência dos construtores. A vista-grossa da fiscalização de obras. Enfim, todo o esplendor do empreendorismo cavaquista na província - mas também a conivência dos poderes autárquicos em toda esta cegada triste.
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O poder local democrático, cada vez mais sem receitas próprias, inerme perante os interesses dos grupos económicos privados, das opções cegas do poder central e dos caprichos dos fundos europeus, põe-se cada vez mais a jeito na busca daquilo a que chama, com circunspecta jactância, “o consenso” – que não passa daquilo a que, em português vernáculo e antigo se chama, muito mais prosaicamente, “conchavo”.
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Um dos campeões absolutos nesta modalidade polítiqueira local é José Elísio. ZéElísio, o “pernas” - o afoito presidente da Junta de Lavos. Depois do cambalacho da reformulação das freguesias, o “pernas” acaba de participar noutra cegada patrocinada pelo governo anterior (que o meu amigo Agostinho tem vindo a comentar e a documentar com profusão de pormenores sórdidos, no seu blogue “Outra Margem”) e que decerto o coloca nos píncaros da popularidade na sua freguesia.
Elísio conseguiu, com o inepto altopatrocínio do presidente da Câmara, um Ataíde socialista, chamar a si (a Lavos), a edificação de uma espécie de super-centro-de-saúde que agrupará os “utentes” de quase todas as freguesias de sul do concelho (levando ao encerramento dos centros de saúde destas e transformando Lavos numa espécie de Meca do turismo de saúde local), digam lá que não é de génio. Os fregueses e o comércio de Lavos estão exultantes. Pimenta no cu dos outros para eles é refresco.
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A verdade porém é que os utentes das freguesias despojadas dos seus centros de saúde estão invejosos. Apesar de enxofrados, nofundonofundo também queriam para eles um autarca como o “pernas” (mesmo que fosse alguém só com duas).
Afinal estamos em Portugal. Somos todos portugueses. Este é o país de “Os Lusíadas”. Onde todos os fregueses partilham dos mesmos valores - aqueles que se consubstanciam naquela palavra com que Camões culminou a sua obra. E que define uma gente que só sente que prospera com o mal dos outros. Metade nem sequer vota. A outra metade divide-se entre espíritos florentinos como ZéElísio, o presidente da junta, e simples de espírito  como Ataíde, o presidente da Câmara.
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E, ao contrário do meu amigo Agostinho, não vejo alternativa a isto. Porque, ai de mim, também não vejo onde caralho enxerga Agostinho uma maioria social de esquerda.

As cegadas entorpecem-me a concentração. Distraem-me. E nem sequer me divertem. Pelo contrário, aborrecem-me de morte. 
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