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terça-feira, 19 de janeiro de 2016

O professor espectáculo

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Os nossos egrégios avós que implantaram a República portuguesa nunca concederam à mulher o direito de voto. Não o fizeram apenas por serem um bando de façanhudos machistas prepotentes e botas-de-elástico (está bem, também o eram um pouco, mas era esse o ar do tempo). Eles tinham a consciência bem aguda de que a população feminina estava, à época, muito mais vulnerável à influência retrógada da Igreja católica e que, se tivessem cedido aos arroubos das sufragettes, tal significaria o regresso imediato e em força (e por via democrática) do país ao tempo de D. Miguel  e da santíssima inquisição.
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Os nossos velhos republicanos, positivistas, depositaram então todas as esperanças naquilo a que chamaram instrução pública. Tinham uma fé inabalável na literacia e no conhecimento informado para remover de vez a idade média (o preconceito, a ignorância, a superstição e a estupidez em geral) do espírito dos portugueses de ambos os sexos.
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Pois bem, cem anos de instrução pública depois, os tugas de todos os sexos já quase todos sabem ler, ainda que não pratiquem demasiado. Continuam, por exemplo, a não fazer a mínima ideia do que seja a razão pura, ou sua crítica; ou o espírito e a sua fenomenologia, ou sequer a Evolução das Espécies; ou o Capital e a luta de classes; muito menos o que disse Zaratustra ou o que escreveu Simone de Beauvoir. Eles lêem é José Rodrigues dos Santos e a revista Caras.
É essa leitura informada de aventuras e curiosidades da vida airada de príncipes encantados e donzelas em apuros que, juntamente com a devoção à televisão, lhes tem formatado o espírito para sufragar alegremente a carreira política de carinhas larocas como José Sócrates e Santana Lopes. Ou Pedro Passos Coelho. E que, a acreditar nas sondagens de opinião, vai propiciar a eleição de Marcelo Rebelo de Sousa.
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O prof. Marcelo Rebelo de Sousa é, de todos os candidatos, aquele cuja falha de carácter é mais notória a olho nu. Marcelo é, parece-me, aquilo a que se chama vulgarmente um poltrão, um balelas, um fala-barato, um tretas; um espírito equívoco e dissimulado, retorcido como o cepo de uma olaia; um chiquinho-esperto intriguista e manipulador, ungido pela predestinação. E a sua candidatura uma falácia, tão anedótica como a de Tino de Rans.
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Filho de um fascista, ele próprio fascista quando jovem, não foi à guerra defender o império porque o papá era ministro. Afilhado do ditador, de quem herdou o nome próprio, descobriu a social-democracia já adulto, com o vintecincodabril (foi um coup de foudre). Foi director do Expresso de Balsemão e líder do pêpêdê, mas tornou-se conhecido, famoso, por ser especialista em tudo, e comentador, na televisão. Foi aí, com o cinismo leviano dos velhacos que, durante anos, Marcelo fez os malabarismos de prestidigitação cujas bolinhas de sabão deixam hipnotizado todo um vasto eleitorado que se deleita, reverencial e alarve, com a prosápia vazia dos doutores e com o laifessetaile dos famosos.
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Marcelo é, no entanto, volúvel como uma borboleta: tem ideias sobre tudo e para todos os gostos; e incontinente como um roedor: de cada vez que mija tem uma ideia, não pára nunca de se reproduzir em contradições.
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Doutor em Ciências jurídicas, catedrático de direito e conselheiro de Estado, Marcelo também acredita, aparentemente, no Direito Divino. Só isso (ou uma qualquer excêntrica espécie de megalomania mórbida) faria um candidato presidencial presidir também a uma coisa que dá pelo nome de Casa de Bragança (uma instituição que pugna pela legitimidade das pretensões deste artolas e dos seus descendentes à soberania de Portugal).
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Nunca confrontado, por jornalistas ou concorrentes, com este aparentemente real paradoxo, ou imbróglio ético-legal, de Marcelo espera-se que, caso seja eleito presidente da República de Portugal, leve a assertividade filosófica e a coerência política ao limite das suas óbvias consequências cómicas: que abdique de imediato do cargo em favor de S.A.R., a quem reconhece o direito divino, por hereditariedade, à chefia do estado. Ou que, no mínimo, convoque um referendum ao regime.
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É esta a falácia da sua candidatura - que, se sair triunfante, resume num desfecho anedótico todas as partes gagas de uma república patética e da sua cidadania triste.
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