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sábado, 13 de dezembro de 2014

Da fraternidade.

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Um pintor é um homem demasiado absorvido
pelo que vêem os seus olhos
para poder ter o domínio do resto da sua vida
Vincent Van Gogh
(carta nº 620, ao seu irmão Theo)
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Conheço Joaquim Monteiro há mais de trinta anos. De um estreito convívio nas noites longas de uma certa boémia figueirense dos anos oitenta. 
Mais velho do que eu, isso não impediu todavia que fosse crescendo entre nós uma mútua consideração que, se que nunca chegou à intimidade (devido talvez ao seu temperamento, de uma discrição que lhe vem, suponho, de uma reserva cautelosa, muito conveniente nos anos da agitação clandestina) transformou-se numa amizade que resiste ao tempo.
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Velho comunista e resistente, o Monteiro, como é conhecido, é um guardião da memória, bibliófilo amador, coleccionador e arquivista compulsivo de velhos documentos, fotografias, jornais e livros antigos. Grande conversador e contador de estórias, da sua memória prodigiosa é sempre capaz de sacar um episódio exemplar ou pícaro para apimentar uma boa gargalhada.
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Com os anos e as vicissitudes da vida fomos, no entanto, deixando de nos ver com a frequência de antanho. Contudo, quando isso acontece, o Monteiro surpreende-me sempre com uma estória rocambolesca ou com uma inesperada delicadeza.
Há dias encontrámo-nos na Figueira por acaso e diz-me de pronto: “Ainda bem que te vejo que tenho ali no carro há mais de um ano uma coisa para ti”. Conhecedor do meu gosto por velhos segredos pouco revisitados presenteou-me com esta pequena preciosidade: uma edição fac- símile do primeiro tratado de pintura impresso em português por um hoje esquecido frade do século dezassete – 

 (do seu “Prólogo“ e do “Louvor da Pintura” nenhuma novidade: trata-se da versão autorizada pela santa inquisição do ideal programático da contra-Reforma para as artes, em voga no Portugal filipino de então. Nem da sua “simmetria” ou da “Perspectiva”. Verdadeiramente interessante, e muito instrutivo e útil para mim, são as suas preciosas receitas para o fabrico de tintas, de vernizes, de secantes, de betumes, de mordentes, e para a preparação de suportes; de “como se mezclam e assombrão as cores” “e os realços”, e o “modo de fazer cambiantes”, ou o “modo fácil para copiar hua cidade, ou qualquer cousa”. etc.)  Uma maravilha..

Irmão mais velho do meu amigo Filinto Viana, tal como Theo Van Gogh, Monteiro conhece bem o handycap de que ambos padecemos; e parece transferir também para mim o desvelo generoso e fraterno (quase paternal) que dedica ao seu irmão pintor.
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Decidi retribuir-lhe com um retrato. Um singelo desenho, que fiz no mesmo dia. Não está perfeito, nem sequer muito exacto, mas ele também sabe que, como referia o grande Matisse, “l’éxactitude n’est pas la verité”.
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2 comentários:

ANTÓNIO AGOSTINHO disse...

Como se diz agora no "feisse buque", gostei.
Um abraço ao Joaquim Monteiro.

cid simoes disse...

Sim, fraternidade. No sufoco em que vivemos é reconfortante sentir que a amizade prevalece e se consolida.