.

domingo, 11 de maio de 2014

Cesar Vallejo

.

Por vezes, chega-me uma ânsia ubérrima

.
Por vezes, chega-me uma ânsia ubérrima, política,
de amar, de beijar o carinho em seus dois rostos,
e chega-me de longe um querer
demonstrativo, outro querer amar, por gosto
          ou à força,
o que me odeia, o que rasga ao rapazinho o seu
          papel,
a que chora pelo que chorava,
o rei do vinho, o escravo da água,
o que na sua ira se ocultou,
o que sua, o que passa, o que sacode a sua pessoa
          na minha alma.
E quero, por isso, arranjar
a trança ao que me fala, ao soldado, os cabelos;
a luz, ao grande; a grandeza, ao garoto.
Quero engomar directamente
um lenço ao que não pode chorar
e, quando estou triste ou me dói a ventura,
remendar as crianças e os génios.

Quero ajudar o bom a ser o seu bocado mau
e tenho pressa de estar sentado
à direita do surdo, e responder ao mudo,
tratando de lhe ser útil no
que possa, e também quero muitíssimo
lavar o pé ao coxo
e ajudar a dormir o zarolho meu vizinho.

Ah este amar, o meu, este, o mundial,
Interhumano e paroquial, experimentado!
Chega-me no momento exacto,
desde o fundo, desde a virilha pública,
e, vindo de longe, apetece beijar o lenço do pescoço do cantor,
e beijar o que sofre em sua sertã,
o surdo, em seu rumor craniano, impávido;
o que me dá o que em meu peito esqueci,
em seu Dante, em seu Chaplin, em seus ombros.

Quero, para terminar
quando estou à beira célere da violência
ou cheio de peito o coração, quereria
ajudar a rir o que sorri,
pôr ao malvado um passarinho em plena nuca,
tratar dos doentes enfadando-os,
comprar ao vendedor,
ajudar o matador a matar –coisa terrível –
e quisera ser bom comigo próprio

em tudo.
.
(tradução de José Bento)
.
O recentemente falecido Vasco Graça Moura achava Fernando Pessoa um poeta demasiado sobrevalorizado (aos seus imensos admiradores isto deve ter-lhes parecido uma deliciosa excentricidade - tal como, aliás, a posição do poeta cavaquista em relação ao acordo ortográfico).
Eu também acho (já agora, também acho Graça Moura demasiado sobrevalorizado mas compreendo que entre as hienas o defunto mais recente seja sempre mais celebrado). Contudo, aos admiradores de Moura, isto já lhes deve parecer uma hedionda heresia
.
No fundo, acho que concordo com o tradutor de Shakespeare porque desconfio de religiões com muitos prosélitos - como o cavaquismo, o Benfica, o-inglês-no-jardim-escola, o crestianismoronaldismo e a senhora-de-Fátima, o empreendedorismo, o respeitinho, o grande-consenso-para-sair-da-crise ou qualquer outro unanimismo ou fenómeno de massas.
.
Cesar Vallejo, por exemplo, não o acho sobreavalorizado. Pelo contrário. Embora haja quem o considere "o mais importante poeta universal desde Dante" e seja universalmente reconhecido como um dos maiores poetas de língua castelhana do século vinte, para mim é apenas o meu poeta de cabeceira (ao contrário de Graça Moura, eu não acho que a literatura, ou a arte, seja um concurso de abóboras), desde que o descobri, vai para trinta anos, numa pequena antologia de poemas coligidos, e magistralmente traduzidos, por José Bento.
.
Ao contrário de Pessoa, a sua voz não é esquizofrénica e imaginada, é una e vivida, nunca fingida. O seu discurso dolorosamente lúcido, sincero, sombrio mas paradoxalmente solar, atinge-me em cheio “quando estou triste até à cabeça, e mais triste até ao tornozelo”. Vallejo fazia com as palavras aquilo que Picasso fazia com as imagens: subvertia-lhes o sentido “para intensificar a sua expressão: do sofrimento, do absurdo, do sentimento de culpa, da revolta perante a injustiça, do horror da guerra, das contradições de um ser entre pontos opostos, da esperança de um mundo terreno de amor e compreensão entre os homens”.
.
Por isso fiz-lhe um retrato. A partir da sua foto mais conhecida. “Com a sua pensativa cabeça de pedra  peruana”, como referiu Pablo Neruda - num texto que redigiu um ano após a morte do poeta em 1938, em Paris - que conclui assim: “Eras grande, Vallejo. Eras interior e grande, grande como um palácio de pedra subterrânea com muito silêncio mineral, com muita essência de tempo e de espécie. E lá no fundo o fogo implacável do espírito, brasa e cinza... Salve, grande poeta, salve, irmão.
.

Sem comentários: