.

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Retrato de homem sentado com cachorrinho preto e quadrado branco

.
.
O meu amigo Carlos Figueiredo é, talvez, o mais antigo e sincero admirador do meu trabalho. Desde cedo o demonstrou enfaticamente - o que muito me honra, sensibiliza e desvanece. Num meio cultural e comercial (o dos apreciadores de arte na Figueira da Foz) adverso – composto em partes quase iguais por ineptos pretensiosos  imbecis pedantes, saloios cínicos, chico-espertos e bimbos armados aos cágados, enfim pela fina-flor da mediocridade - Carlos é um caso raro, único, um verdadeiro connoisseur (ele reconhece um bom quadro até pelas costas e um bom desenho só pelo cheiro).

Aqui há tempos, cerca de dois anos, propus-lhe um negócio - uma troca de serviços (Carlos também é um artista, um vitralista de mérito e um moldureiro exigente e competente) e imediatamente ele cumpriu a sua parte. A minha, a execução de dois retratos, cumpri-a apenas pela metade. A parte que faltava é o quadro acima reproduzido, que concluí há poucos dias, um retrato do próprio Carlos com o seu melhor amigo, como ele me pediu. Trata-se de uma pintura minimalista, quase um desenho, a preto e branco, sem lambidinhos nem baboseiras – o cão, num glacis de preto (sucessivas velaturas de tinta muito diluída); o homem, na mesma técnica mas às avessas, em sucessivas e espessas camadas de branco sobre o fundo neutro, aos quais acrescentei apenas, no canto inferior direito, um pequeno quadrado, branco - um pormenor que muitos acharão anedótico ou simplesmente decorativo mas de que o Carlos saberá decerto tirar algum deleite estético e óbvio proveito intelectual, interpretando- lhe as implicações.

As razões da minha infame e imperdoável procrastinação devem-se contudo a questões existenciais, que em mim são recorrentes, sobre a utilidade da arte e da prática da pintura num meio tão hostil a manifestações do espírito: pintar para quê? - para quem?
Porém, ao retomar os pincéis e pondo-me ao cavalete, aproveitando uma avaria no computador que me distanciou da bloga e das caricaturas, depressa essas dúvidas se dissiparam e descobri, quiçá, uma das mais belas utilidades da pintura: a expressão da gratidão.


Continuo no entanto a pensar que é uma lástima que uma arte tão útil seja cada vez mais selecta. Mas a verdade é que são bem poucos os que, como Carlos, lhe conhecem os códigos e lhe tentam compreender os mistérios.
.

4 comentários:

trepadeira disse...

Um texto belo e um quadro tocante.

Abraço,

mário

Luis Filipe Gomes disse...

Sim é verdade a arte é gratidão eu tenho uma teoria de que é voto e ex voto.
E também acho que é aquela coisa que se produz à semelhança da ostra e que pode acabar no museu como as que estão na sala de René Lalique do Museu da Fundação Calouste Gulbenkian, no pescoço de alguém à laia de troféu ou a ser pasto de porcos.

O quadrado branco parece-me belo para um artista que é vitralista e por isso trabalha com luz e que ainda por cima é moldureiro

cid simoes disse...

Gosto do quadro, não sei porquê mas gosto. E sempre manifestei a minha admiração e ‘inveja’ pelo trabalho do Fernando Campos tal como pela sua irreverência. Sem complexos… Gosto!

Judite Castro disse...

Gosto.
Obrigado por partilhar connosco.