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sábado, 5 de fevereiro de 2011

A arte à pato, no SNS


Apesar de, em Portugal, a opinião pública ter a ideia de que os artistas são uma classe de inúteis pendurados na mama do estado, a alguns deles no entanto, é cada vez mais reclamado o trabalho de graça, a oferta, a borla. Como se fosse algo natural, assim uma espécie de imperativo moral, ou o caralho.
.É preciso dizer que tudo isto se passa num país moderno; a sério, à americana, onde tudo é business e o mais simples acto médico é encarado, com naturalidade, como uma transacção comercial. Um país altamente profissionalizado, onde não há almoços grátis. Num país onde até a administração de um hospital público é responsabilidade de profissionais imensamente qualificados e devidamente remunerados (não fosse dar-se o caso de desatarem a contrabandear a penicilina ou o soro fisiológico pela porta do cavalo).
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Ontem foi inaugurado oficialmente, com a presença da ministra da tutela, o novo edifício da consulta externa e o Serviço de Urgência do Hospital Distrital da Figueira da Foz (creio que é assim que ainda se chama).
Eu estive lá. Tirei-me dos meus cuidados e lá fui para o mundanal ruído das inaugurações oficiais. Gravatas discretas. Camisas azul marinho. Fatinhos sóbrios e conversas de circunstância. Óculos escuros. Sorrisos selectivos. Fascinante.
Fui cumprimentado pela ministreza, que não me viu, assim como por um séquito interminável de dignitários anónimos. Nem preciso de dizer que fiz como aconselha o nosso Serviço Nacional de Saúde: de seguida, fui lavar as mãos, repetidamente, com desinfectante. Antes de ir almoçar, ao refeitório.
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Eu explico: fiz parte de um grupo de artistas convidado pela administração do Hospital para dar um pouco de cor à lividez daquelas paredes novas. Como os meus colegas, tive assim a oportunidade de contribuir, graciosamente, para a gestão rigorosa do serviço público e para o bem-estar dos utentes do Serviço Nacional de Saúde. Palavras para quê; somos artistas portugueses.
Podem por isso os contribuintes ficar descansados que, em caso de crise renal, unha encravada ou febre amarela (é verdade, os artistas também têm os seus achaques) este vosso criado irá, sem nenhuma isenção ou favor, como qualquer mísero contribuinte, continuar a pagar as taxas moderadoras da praxe ou outras que a suas excelências aprouver inventar para o efeito, no caso de se lhes esgotar a verba para a renovação da frota automóvel, ou para a redecoração dos gabinetes. Ou o caralho.
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De nada. Foi um privilégio.
É sempre um prazer (complexo, entre o perverso e o aristocrático), isto de um artista pobre contribuir gratuitamente para o exclusivo prazer e deleite dos clientes do Serviço Nacional de Saúde, essa mole humana de míseros contribuintes que não têm o mínimo apreço pela sua actividade.
.Ao alto eu, no meu labirinto, com a natureza morta com laranjas.
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1 comentário:

cid simoes disse...

Como é que alguém que durante horas espera ser atendido para que lhe minorem o sofrimento pode apreciar o seu trabalho? Nos anos 60 organizei uma exposição do Lima de Freitas no café da Cooperativa Piedense seguida de um colóquio que foi apreciada e discutida por intelectuais e analfabetos. As pessoas apreciam preciso é dar-lhes condições.