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sexta-feira, 28 de setembro de 2007

A pintura e o mal


La peinture, dirá Claudel, n’est pas un art de surface mais de profondeur.
Elle doit montrer les «dessous», mettre «le regard à l’envers».
C’est une durée «congelée en êxtase», une jouissance du dedans vide.
Pourquoi n’y aurait-il pas une beauté interieure, une beauté creuse, une jouissance de la cavité? Jacques Henric

Há tempos vi-me instado a comentar livros que não mudaram a minha vida. Embora tenha achado o exercício patusco e rebuscado (a minha inteligência comezinha, prática e céptica não está habituada a dirimir assuntos tão putativos e académicos), tal não me impediu, no entanto, de reflectir no inverso. Terá havido algum livro que me tenha mudado a vida e influenciado, de algum modo, a matriz céptica e cínica da minha sensibilidade?
Pois bem, acho que sim.
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1983. Eu tinha pouco mais que vinte anos, estava em França e eram os primeiros anos Miterrand. Foi o anúncio, reproduzido acima, que vi numa revista que eu adquiria frequentemente, a Artpress, que me levou a adquirir, numa magnífica livraria, em Nantes, o livro que mudou a minha relação com a pintura, a arte e, por isso, a vida.
Este livro, La peinture et le mal, de Jacques Henric, perdi-o em 1985 numa das encruzilhadas da minha vida, não sem antes ter sido para mim um choque e uma revelação.
O livro é um enorme tratado de amor pela pintura e também um libelo contra a teologia das vanguardas e a sua doutrina, segundo a qual estas se sucedem na via inexorável da ”modernidade e do progresso reunidos”.
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Henric trata de Poussin, Ticiano, Watteau, el Greco, Cézanne, Seurat, Veronese, Degas, Malevitch, Picasso, etc., reflecte, sugere ligações, conivências, causas e consequências morais, sempre muito longe do discurso reverencial do esteticismo habitual de historiadores e conservadores de museu.
Nesta análise, estes artistas são tratados como contemporâneos, ”donc discutables, donc intéressants, pas en fetiches”. A pintura é aí encarada como afirmação do pensamento, uma filosofia, não como uma ilustração de época, como nas monografias rotineiras.
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Henric explana a teoria de que a pintura é um fenómeno católico (há grandes pintores protestantes, pois sim, mas não existe pintura luterana, sabendo nós da desconfiança do puritanismo, de todos os puritanismos, pela equívoca duplicidade da imagem) e como tal, a “sale besogne“ do artista é dar a ver, sugerir e mesmo apontar o mal, forçando os seus contemporâneos a encará-lo. O artista deve ter a consciência da “queda” (ou “pecado original”, ou "fim da inocência", o que se quiser chamar-lhe) e será tanto mais notável quanto mais, cirúrgica e explicitamente, escarafunchar na chaga viva dessa condição humana, caída. Mais ou menos como faz Paula Rego.
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Daí a demolição metódica e implacável que Henric faz de Duchamp, dos seus émulos e de quase todos os vanguardismos do século XX. A quem ele acusa de, com ligeirezas, boutades e piadas artificiosas haverem transformado a arte num imenso happening, onde nunca acontece nada a não ser o fogo fátuo do mais vazio entretenimento. Muito longe “de ceux qui arrachent les tentures et griffent les peaux trop bien fardées, comme Degas ou comme Picasso.”
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Nota: pesquisando na net, tomei conhecimento da sua reedição, este ano, em França. Não pela mesma editora nem com a mesma magnífica impressão sépia de um fragmento do “massacre dos inocentes”, de Poussin na capa. Nunca se pode reaver tudo…
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3 comentários:

carlos freitas nunes disse...

Para que não batas mais no ceguinho, o assunto não seria académico, seria mais do foro do trivial, do banal, se quiseres. Vi-me envolvido e sem desprazer inscrevi o teu blog nas considerações, li com prazer o que escreves-te, embora eu tenha despachado a "encomenda" sem muito pensar, pelo pouco valor que lhe atribuia, com meia dúzia de livros pousados na minha frente. Esta dos livros que mudaram a nossa vida também já circulou por ai, a essa tive o prazer de não responder, porque quem muda a minha vida acontecimentos, tal como o esvoaçar de uma borboleta na Tailândia. Um Abraço

carlos freitas nunes disse...

Ainda agora a borboleta esvoaça na Birmânia.

alex campos disse...

E em Portugal? Derivado das directas... ou indirectas.